sábado, fevereiro 11, 2006

Uma história (quase) real

1986, nasce Nélio Miguel da Silva, fruto de uma relação que atingiu o patamar máximo da solidez amorosa aos 2 meses de namoro; filho da ainda menor, mas não menina Maria Eulália, e de José, apenas José (reza a lenda que os pais o abandonaram, e a mãe mandou-o Guadiana abaixo). Havia o destino de se lembrar de juntar no mesmo bairro operário, o Nélinho, o Sandro, e o Valter.
Os 3 faziam da rua a sua primeira casa, dos postes da EDP fontes de riqueza (subiam-nos pra roubar os casquilhos de cobre), da família que está presa, drogada, morta, desaparecida, a apanhar pêras na Suiça um mero objecto de chacota, e mais tarde de pancada. Era assim a vida dos 3 amigos, conflituosa quanto baste, mas duma alegria cortante. Ter a fotografia deles no quadro de cortiça da Worten era pra eles motivo de orgulho pessoal; aparecer no jornal desportivo local era como atingir o nirvana do dito bairro operário. Aproveitando esta deixa desportiva, caracterizo o Sandro. Sandro podia ter sido rico. Sandro podia ter casado com uma modelo jugoslava e fretar um avião para ir assistir ao parto dela algures no Burundi numa estância paradísiaca. Sandro podia ter ido longe no mundo da bola. Mas não foi. A quem assistia aos jogos no baldio do bairro operário, entendia que estava ali futuro. Sandro era dotado dum bom toque de bola, e duma técnica que lembrava Futre. Chamava na brincadeira ao amigo Valter, o Maradona, num claro gesto de chacota para com este, cuja bola o atrapalhava mais que testículos de elefante. Era o enfant terrible da equipa do bairro, e cedo começou a brilhar nos escalões de formação da sua localidade. Deu nas vistas, como havia dado para os idosos que o viam deslizar no pelado do seu bairro, e deu nas vistas também aos olheiros do Sporting que por ali passavam. Sandro deu o salto. Foi trocado por um saco de bolas e cones, e rumou a Lisboa, rumo aos milhões. Encantou os então treinadores da famosa equipa lisboeta, mas num claro regresso ás origens não resistiu, e roubou um par de ténis, pouco mais de 30 dias depois de lá ingressar. Recambiado, voltou pró bairro operário e, enquanto lia um jornal antigo d'A Bola, via-se a ele próprio, como grande esperança do futebol português, a fazer o que mais gostava: a brincar com a bola...
Sandro entrara em depressão. Fora procurar os amigos de infância e depara-se com um renovado Nélio, e um putrefacto Maradona. Nélio havia sido mandado para uma casa de correcção por furto qualificado, e voltara à terra natal para ingressar na chamada "escola dos betos", essa espécie que tanto o enojava, mas que ao mesmo tempo, o sustentava (entre dinheiro, telemovel, etc). Entrou "bicho-do-mato", saiu rei da dita escola, tal as raízes que criou por anos de reprovação contínua. Arranjou amigos prá vida, daqueles que nos safam em qualquer circunstância: seja para nos pagar uma sandes, como pra nos pagar um sumo, como pra nos dar o telemovel, como pra nos dar a blusa, como pra nos dar os ténis, como pra nos dar algo. Nélio aprendera uma nova realidade: se não podes vencê-los, junta-te a eles. E ele juntou-se, infiltrou-se, e era agora um quase-beto com calças pelas canelas, uns sapatos de vela com os cordões cheios de pó do caminho de terra que dá acesso ao seu lar, e uma camisa .. Tamberlake. Acompanhava com gente mais ou menos normal, e a única recompensa que dava áqueles novos amigos era fugir, qual galgo, raçudo, na disputa da bola, e levar a equipa ás costas nas Inter-turmas escolares de futebol. Os seus quase 20 anos faziam a diferença. Sandro teve então uma pequena desavença com o Nélio, falava-lhe da criação que ambos tiveram, que todagente que tome banho todos os dias é a abater, que todagente que tenha telemovel, tem de ficar sem ele. Falou-lhe da foto na Worten. Nélio argumentou, falou-lhe do provérbio que havia apreendido. Ao juntar-se a eles, era capaz de extorquir mais e mais coisas. Mas a amizade é forte, e as ganzas também. Nélio perdoo-o, e sentados cada um na sua grade de minis, celebraram o regresso do amigo Sandro à terra que o viu nascer. Beberam e drogaram-se até altas horas da madrugada, mas havia algo que faltava. O Maradona? - perguntou o Sandro, ainda meio comido.
Eram 5.30h da manhã. O mercado deserto, os bidons queimavam a fogo lento, as hortaliças chegavam. Maradona havia sido escalado pra carregar canastras de hortaliça. E ele fazia-o com perícia. Ostentava uma rosa, mal tatuada no braço, uma rosa de esperança num futuro melhor. Sonhava um dia ter a própria banca de hortaliça no mercado. Mas até lá tinha que ser assim, começar por baixo. Entre canastras e cigarros, lá ia apreendendo uma ou outra anedota de nível consideravelmente baixo. Sabia assobiar. Os donos das hortas queriam apelidá-lo de rouxinól, mas o apelido não foi bem sucedido. As calças rasgadas, a t-shirt das Jornadas Desportivas 1998, e os ténis RITEX não o permitiram. Era Maradona o seu apelido. E foi o mesmo sorriso juvenil que fazia quando via as carrinhas de cenouras e bróculos, aquele que recebeu Sandro, já no bairro. Riram, fumaram, beberam, drogaram-se, vomitaram-se, alucinaram-se. Era hora de recordar bons tempos.
Nada melhor que recordar os bons velhos tempos. Sábado à tarde é dia de jogo de bola para a civilização própriamente dita. Nélio, Sandro e Maradona escalaram mais 2 colegas, e foram á conquista. Entraram no estilo habitual: Pitbull em riste, charro na mão, e aquele sururu próprio da analfabetismo aos 20 anos. Com a mesma educação que tinham no dia em que nasceram, pediram para jogar: SAIAM LÁ CARALHO! E assim foi. Fizeram o gosto ao pé, bailaram á frente dos adversários, e uma boa tarde de bola não ficava completa sem um ensaio de porradas à antiga. Foi um rapazito que teve o azar de entrar mais duro sobre o Sandro, o pobre espancado. Sem resistir, ficou sem telemóvel, dinheiro, casaco do fato treino, e os ténis. Ganhou um olho negro, a cana do nariz partida e hematomas por todo o corpo. "Vá lá não soltaram o pitbull", respirava de alívio o pobre rapaz.
Nélio, Sandro, e Maradona queriam novos desafios. Começaram a passar droga pra arranjar dinheiro prá carta de condução, e assim foi. Sem falhar uma única pergunta, ou manobra, tiraram a carta irrepreensívelmente, ainda que o Maradona tenha tentado roubar os tapetes do carro da instrução. Era hora de fazer mal também pelas longas linhas de alcatrão, até então invulneráveis. O Fiat Punto GT foi comprado, foi equipado, foi testado, foi acelerado, e foi espetado. Outros se seguiram, sempre na mesma cadeia. Era hora dos amigos se separarem.
Nélio engravidou uma rapariga com 17 anos, e acabou por ter de se casar com ela, sob ameaça de arma de fogo. O galgo do grupo percorria agora as estantes do InterMarché a repôr yogurtes para sustentar a família. Os amigos betos deram graças a Deus. Maradona foi preso por alegadas ligações com 2 conhecidos proxenetas da região. Jura inocência, mas a rosa que tatuou no braço, num momento infeliz, não o deixava mentir: Culpado. Sandro, esse, o dos milhões, chorava... Passou-lhe uma grande fortuna ao lado, em troca de um par de ténis. Profissionalmente, é empregado da junta de freguesia, e continua a espalhar o perfume num clube que disputa o INATEL. Apesar dos pulmões, fígado, e pâncreas há muito o terem abandonado, continua sem lhe perder o jeito. Remata, Sandro!

Sublime!